No segundo semestre de 2018, as possibilidades de projetos multiespécies estavam sendo discutidas pela pesquisa Jardins Possíveis na extensão pelo programa Natureza Políticas. Os alunos dos cursos de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG foram convidados a problematizar a forma em que pensam os espaços da cidade e propor uma cidade para todos “humanos e não-humanos” a partir da disciplina de projetos flexibilizados – PFLEX – ministrada pela professora Luciana Souza Bragança.
A experiência buscou discutir as conclusões da Pesquisa Jardins Possíveis entendendo os possíveis revelados em campo pelos jardins descobertos. De humanos a não-humanos, separados ontologicamente pela ideia moderna de natureza, à amigos. Esse foi o possível que os jardins trouxeram para se pensar os espaços, os territórios, a cidade.
A pesquisa pôde fazer ver outros mundos, outros territórios, outros jardins possíveis, jardins microcosmos do infinito esses como um microcosmo da Terra viva, ontologia de mundos relacionais. A luz desses jardins foi possível iluminar diferentemente o regime de visibilidade da arquitetura e do urbanismo e ver essas famílias multiespecíficas que se preservam pelo cuidado, amor e amizade, onde as disputas não são primordialmente econômicas, coletivos multiespécies territorializados que sobrevivem nas bordas do capitalismo e do seu planejamento e ocupam um pouco mais de 50% do território estudado. Todavia nossa forma de construir espaços interconectados apenas ao humanismo antropocêntrico ou ao mercado em expansão não é suficiente para esses mundos. É preciso, num ato de resistência, levantar esses possíveis cosmopolíticos da arquitetura e do urbanismo baseados em alianças afetivas e confluências, imanência das possibilidades presentes nos jardins para Cidades Jardins Possíveis. Reativar aquilo de que fomos separados no planejamento e na invisibilização, mas que sobrevive no cotidiano e na memória dos jardins.
O objetivo da disciplina foi fazer uma provocação e convocação aos estudantes para fazer do espaço a possibilidade concreta de extensão da subjetividade e das formas de alteridade aos outros seres, orgânicos e inorgânicos, que não os humanos.
Seremos capazes de alargar o círculo político e considerar a todos sujeitos e não mais objetos? O que foi realmente colocado em jogo pela disciplina é principalmente a pergunta: é possível se pensar a “cidade para todos” como sinalizado nos jardins?
Como proposta de base foram buscados possíveis caminhos para pensar o que significa resistir enquanto arquitetos e urbanistas diante da chamada crise ecológica que vivemos e quais são os reais aliados nessa busca. Daí, partindo do entendimento da cosmologia dos jardins e do termo cosmopolítica como proposto por Stengers e Latour, foi desenvolvida a possibilidade cosmopolítica dos jardins como ferramentas de entender e de propor Cidades.
A disciplina foi pensada e proposta como uma hipótese investigativa de como poderiam ser incluídos outros agentes no processo de projeto e planejamento urbano. A ideia levantada na disciplina é a possibilidade de pensar todos esses agentes a partir de bases espaciais que os levem em consideração não apenas passivamente ou para usufruto dos humanos.
O objetivo geral da disciplina foi pensar todos os agentes da cidade no projeto, construindo outras perguntas.
Ela foi desenvolvida em módulos com objetivo final de propor pequenos projetos de jardins: em casa, na arborização, num espaço público. A partir do entendimento multiespécie, foram levados em consideração elementos como: plantas, animais, água, relevo, clima, ventos, insolação e pessoas.
Os resultados esperados foram projetos que especulassem um modo de pensar a relação entre humanos e não-humanos na produção espacial.
Os objetivos específicos foram: estudar a complexidade das relações sócio-espaciais que envolvem um meio a ser modificado por um projeto urbano incluindo o jardim e que trabalha com a ecologia; compreender as relações entre os diversos agentes nas cidades; buscar formas de projeto contextualizado nas dinâmicas próprias dos seguintes agentes: plantas; animais; águas urbanas; clima, relevo e solo; pessoas.
O território da cidade escolhido foi o bairro Santa Tereza.
Na aula inicial foi apresentada a proposta e foram apresentadas e discutidas as ideias de sustentabilidade, desenvolvimento sustentável, ecologia, natureza e as políticas da e para a ‘natureza’, suas propostas e seus limites. As problematizações foram conduzidas no sentido de iluminar as limitações das formas que são consideradas os outros seres pela arquitetura e o urbanismo e que são direcionadas por esses conceitos. O objetivo de preservar o crescimento econômico e não a vida e as implicações antropocênicas dessa abordagem foram muito presentes nas colocações feitas por mim e nas falas dos alunos.
Os alunos foram inicialmente divididos em cinco grupos de quatro pessoas.
Cada grupo deveria buscar entender esses agentes citados acima a partir do recorte espacial escolhido e levantar hipóteses projetuais para esse grupo.
Eles deveriam responder projetualmente às questões: e se fosse para a água? e se fosse para bicho? e se fosse para planta? e se fosse para o sol, o relevo, o solo, o vento? e se fosse para gente? Era premissa das propostas entender que as mesmas estavam inseridas na cidade e que, de alguma forma, esta cidade deveria fazer parte do projeto apresentado, portanto não era possível subtrair totalmente os humanos e seus espaços.
Houve uma apresentação para toda a turma das propostas de cada um dos grupos. Foi muito interessante ver as propostas apresentadas pela potência investigativa e propositiva que foi construída. Nenhum dos alunos, entretanto havia proposto algum projeto pensando na centralidade desses agentes, eles eram estudados como objetos que privilegiassem a vida nas cidades para as pessoas, que promovessem sustentabilidade e também como infraestrutura “verde”. Como forma de contornar essa dificuldade esses dois grupos fizeram excelentes pesquisas e também observação de campo bem como escolheram o seguinte recorte de elementos essenciais para a vida de qualquer espécie: acesso à água, à comida e a abrigo como primordiais para as propostas, o que embora possa ser uma simplificação, traz os requisitos essenciais para uma vida de qualidade e foi importante para o tempo da disciplina.
Propostas desenvolvidas pelo grupo das Plantas
Trabalho dos alunos: Gabriela Freitas, Lygia Lott, Natielle Benvindo, Pedro Lopes
Propostas desenvolvidas pelo grupo do Vento, Sol e Terreno
Trabalho dos alunos: Arcanjo Rafael, Alix Marie, Maria Isabel, Samuel Lorenzato
Propostas desenvolvidas pelo grupo da Água
Trabalho dos alunos: Anna Beatriz Amarante, Marco Antônio Benini, Mirela Matos, Yago Assis
Propostas desenvolvidas pelo grupo dos Animais
Trabalho dos alunos: Gabriel Spagnol, Laís Bernardes, Letícia Dumont, Letícia Nunes
Na segunda parte da disciplina, outros quatro grupos de cinco alunos foram formados, juntando um aluno de cada grupo anterior. Dessa forma uma nova proposta deveria ser feita levando em consideração os projetos anteriores. Deveriam ser apresentados além do projeto as discussões empreendidas e o porquê de cada escolha tendo em vista como cada agente participou das discussões.
Trabalho dos alunos: Laís Barbosa, Leonardo Salvaterra, Lygia Lott, Marco Antônio, Samuel Lorenzato
A proposta era de construir uma assembléia entre os mundos descobertos e propostos anteriormente. A ideia foi baseada no último capítulo “O parlamento das coisas” do livro Jamais Fomos Modernos (1994) e em Políticas da Natureza: como associar a ciência à democracia (2004) de Bruno Latour onde o autor propõe “dar voz, representação política a esses não-humanos, libertá-los do cativeiro onde vinham sendo mantidos sequestrados sob o triste rótulo de “objetos” e principalmente da proposta da eto-ecologia cosmopolítica de Stenges.
Sem a pretensão de unificação, os alunos foram incentivados nas orientações a pensar sobre as decisões espaciais a partir de disputas territoriais de vontades e possibilidades de cada agente e no enredamento desses amigos e dessas disputas muito presentes nos espaços dos jardins. Foram levantados vários tipos de divergências e antagonismos nas propostas, principalmente ao se cruzar plantas, bichos e água com a cidade formal e o grupo das pessoas.
As propostas foram construídas mirando na cosmopolítica espacial possível como uma nova Cidade jardim numa composição progressiva do mundo em comum a compartilhar e onde a agência de todos está presente como nos jardins pesquisados. Houve uma apresentação das quatro propostas para toda a turma e para uma banca formada pela professora e dois convidados: Alceu Brito Corrêa Filho, Danilo Caporalli Barbosa.
Alice Renno Werner Soares
Andre Dornela Menezes
Anna Beatriz De Castro Amarante Lucio
Arcanjo Raphael Souza E Silva
Alix Marie Victoire De Marliave
Gabriel Spagnol Vizibelli Chaves
Gabriela De Freitas Cancado
Jonathan Andres Garcia Gomez
Lais De Souza Bernardes Barbosa
Leonardo Mendes Salvaterra
Leticia Do Carmo Nunes
Leticia Silva Dumont
Lygia Araujo Barbosa Lott
Marco Antonio Petruceli Benini
Maria Isabel Tamiao Santana
Mirela Matos Yoshida
Natielle Benvindo Guimaraes Reis
Pedro Henrique Caetano Lopes
Samuel Lorenzato Vasconcellos
Yago Brendow Fernandes De Assis
As significações imaginárias e simbólicas sobre o que sejam “cidades mais justas e sustentáveis” são diversas e atravessadas pelos valores instituídos. Para ampliar tais significações é preciso acionar linguagens diversas, oriundas dos campos técnicos e poéticos.
Para um mesmo fato, surge mais de uma narrativa que explica/justifica tal fato, ou seja, há muitas figurações que precisam ser expandidas, antes que se faça uma separação precoce do que possa ser falso ou verdadeiro, exato ou figurativo. A partir da diversidade de narrativas, orbitam atores humanos e não-humanos diversos, antagônicos ou não.
A cartografia como metodologia assume a pesquisa como dispositivo de intervenção, produtora de acontecimentos abertos à imprevisibilidade da ação.
O movimento alternado do observador-pesquisador, ora em direção ao processo que pretende analisar, ora se afastando dele, desestabiliza a separação entre sujeito e objeto, tornando sujeitos políticos tudo e todos os envolvidos nos processos, com vozes e saberes a serem compartilhados, e, por isso, passíveis de transformação.
Várias atividades extensionistas desenvolvidas pelo Natureza Política se aproximam das práticas de Assessoria Técnica, na medida em que demandas socioespaciais são trazidas por moradores e/ou lideranças comunitárias. Contudo, essas demandas são sempre problematizadas, tendo em vista a sua articulação à pesquisa e à produção de uma ciência viva e engajada socialmente, na fricção do erudito e do popular, resultando em um conjunto de técnicas e procedimentos coletivamente acordados, que visa a inclusão social e a justiça ambiental.
O chamado “giro espacial” é identificado a partir de uma mudança de ênfase da dimensão temporal para a dimensão espacial da sociedade, mudança esta ocorrida, aproximadamente, a partir do início da década de 1980 em termos da reflexão teórica, mas com raízes concretas que remontam aos movimentos culturais e eco lógicos dos anos 1960-70. O termo “giro decolonial” foi “cunhado originalmente por Nelson Maldonado-Torres em 2005” e “basicamente significa o movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico, à lógica da modernidade/colonialidade.
(HAESBAERT)
A única práxis emancipadora é aquela que faz do comum a nova significação do imaginário social. Isso significa também que o comum, […], sempre pressupõe uma instituição aberta para a sua história, […], para tudo aquilo que funcione como o seu inconsciente.
(Dardot&Laval, 2016, p.368)
O comum deve ser pensado como co-atividade (…) somente a atividade prática dos homens pode tornar as coisas comuns (…), pode produzir um novo sujeito coletivo.
Se existe “universalidade”, só pode ser trata-se de uma universalidade prática.
(Dardot&Laval, 2016, p.40)
A história é impossível e inconcebível fora da imaginação produtiva ou criadora, do que nós chamamos imaginário radical tal como se manifesta ao mesmo tempo e indissoluvelmente no fazer histórico, e na constituição, antes de qualquer racionalidade explícita, de um universo de significações.
(Castoriadis, 1982, p.176)
A emancipação advém tanto da compreensão dos mecanismos de poder e sujeição, quanto da destituição da forma de agência que tais mecanismos pressupõe (…) A emancipação é uma deposição do saber, é uma decomposição da voz e a instauração de uma nova gramática de poder na vida social.
(SAFATLE)
“Um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo”
(Foucault, 2015, p.364)
O poder tem que ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia.
(FOUCAULT)